Sangha Virtual

 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

Ferramentas para lidar com a raiva

 

O Buda disse, quando você ficar com raiva, volte para a sua respiração. “Inspirando, sei que estou com raiva. Expirando, sei que a raiva não é boa para minha saúde e para a saúde do mundo”. Isso é um sino de atenção plena. Você sabe disso. Você concorda com o Buda. O Buda o convence a fazer melhor do que isso também para reconhecer o fato de que a raiva não é boa para sua saúde. Ele também oferece ferramentas para transformá-la.

 

Quando você fica com raiva, sua raiva é sustentada por muitas coisas dentro de você. As velhas experiências de raiva e o rosto da pessoa que não foi gentil com você reaparecem em você. Essa imagem se manifesta e apoia sua raiva. Você fica mais zangado. Você se lembra do que ele ou ela disse, você fica com raiva. Tantas coisas em você que você ainda guarda e não foi capaz de transformar surgem e apoiam sua raiva.

 

De repente sua raiva cai como uma cascata, muito forte e você se torna vítima de sua raiva. Seu corpo também concorda com isso, as batidas do seu coração, as substâncias químicas em você são acionadas para acompanhar essa raiva. "Inspirando, eu sei que estou com raiva. Expirando, eu sei que a raiva não é boa para minha saúde, para o mundo e para a comunidade." Este é o primeiro passo.

 

O segundo passo é visualizar o resultado da raiva. Você tem que visualizar como a raiva destruiu sua saúde, destruiu sua comunidade e destruiu o mundo. Você pode ver em você mesmo, na consciência armazenadora, você tem essas imagens. Você viu a raiva destruindo famílias, casais e outras pessoas. Você vê o sofrimento. Se você for capaz de trazer essas imagens de volta, sua raiva irá parar.

 

Ao lidar com sua raiva, você deve saber quais ferramentas usar, quais imagens e sons usar. Eles estão todos lá dentro de você e ao seu redor. Suponha que você conheça alguém que é capaz de sorrir durante as situações difíceis. Se você conseguir pensar nele e ver seu sorriso em uma situação provocadora, essa imagem vai ajudar. Você quer ser como ele ou ela.

 

Sentar-se firmemente como uma rocha e não permitir que a raiva o leve embora. O Buda disse que a pessoa que está com raiva, enquanto tenta fazer mal a você, provocar você, essa pessoa pode estar sofrendo muito. Se você sabe disso, em vez de ficar zangado com ela, você pode olhar para ela e pensar nela com compaixão. Isso é possível.

 

Na década de 1970, um dia fiquei muito zangado. porque recebi uma carta de um campo de refugiados na Tailândia. Uma menina de 11 anos, foi estuprada por um pirata do mar. Seu pai tentou intervir para protegê-la, e então o pirata do mar o jogou no oceano. Durante os anos 70, notícias como essa vinham todos os dias. Estávamos tentando ajudar o "povo do barco". Muitos deles ficavam em campos de refugiados na Tailândia, Malásia e Indonésia. Você fica com raiva do pirata do mar que estuprou a menina de 11 anos. Depois de ser estuprada, depois de ter visto seu pai se afogar, ela também pulou no oceano e se afogou. Você fica com raiva do pirata.

 

Você fica com raiva a ponto de não conseguir comer. Você sabe que tem que fazer algo para transformar sua raiva do contrário você não consegue comer, não pode dormir, não pode continuar a ajudar as pessoas. Então, comecei a meditar caminhando para me acalmar. Naquela noite, durante a meditação sentada, vi o pirata. Essa era a prática da visualização.

 

Se você nasceu em uma família muito pobre de pescadores, se seu pai não teve oportunidade de ir à escola, sua mãe também, você tem sido pobre por muitas gerações. Você nunca teve a chance de sair dessa situação de pobreza crônica. Quando você tem 13 anos, seu pai te pede para ir com ele para o mar, você tem que trabalhar muito. Quando seu pai morreu, você continuou a carreira dele como pescador. Mas você não pode fazer melhor do que ele. Você ainda está na pobreza crônica.

 

Um dia outro pescador disse, “O povo do barco, quando eles fogem do seu país, eles sempre trazem consigo alguns objetos de valor. Ouro e diamantes e coisas assim porque eles deixaram o país e querem começar uma nova vida em outro país. Portanto, se sairmos apenas uma vez, poderemos ter o suficiente para sair dessa situação de pobreza crônica.” Muitos jovens se tornaram piratas por causa disso. No alto mar não havia polícia, e você vê moças, sabe que não vai ser punido. então o jovem pescador simplesmente fez como os outros. Eles estupram.

 

Se você está no barco, o que pode fazer? Se você tentar intervir, eles o jogarão no oceano. Se você tivesse uma arma, o que faria? Você atiraria no pirata do mar. Aquele pirata do mar pode ter apenas 21 anos ou 22. E eu vi isso em minha meditação.

 

Suponha que eu nascesse na costa, ao longo da costa da Tailândia, 24 anos atrás, em uma família como a dele. Meu pai era muito pobre, minha mãe não teve nenhuma educação. Eu fui criado assim. Eu não tenho chance de ir para a escola. Tornei-me um pobre pescador. Ninguém me ensinou a amar, a ser responsável. Ninguém me ajudou a sair da minha situação de pobreza crônica.

 

Outro pescador veio até mim e me convenceu a sair para encontrar o povo do barco para pegar seu ouro, pegar seus diamantes. E lá fui eu. E eu teria feito exatamente o que o jovem pirata fez porque eu não tive nenhuma educação. Eu não sabia amar, ser responsável. Então eu fiz exatamente o que ele fez. E se você atirar em mim, eu morro. Eu simplesmente morro. Porque ninguém me ajudou em meus 21 anos de vida.

 

Então, quando meditei naquele ponto, me identifiquei com o pobre pescador. Eu o via como uma vítima da sociedade. Realmente ninguém tentou ajudá-lo, sua família. Ninguém tentou educá-lo para ensiná-lo a ser responsável, a amar. Quando eu vi isso, minha raiva simplesmente evaporou e de repente tive muita compaixão dirigida ao pescador, ao pirata do mar.

 

A meditação é assim. Meditação é usar a imagem da realidade para ajudá-lo a estar acordado, para ser razoável. Você deve saber que a raiva não é boa para a sua saúde e não é boa para a saúde das pessoas ao seu redor e da sociedade, mas isso não é suficiente. Esse é o primeiro sino da atenção plena. Você tem que praticar. Você tem que saber como praticar para fazer uso do ensinamento, daquelas imagens, do insight, da experiência que temos para abraçar essa raiva e transformá-la.

 

Em nosso corpo, existem linfócitos, o sistema imunológico. Cada vez que há um corpo estranho penetra em nosso sistema, eles vêm com pressa e simplesmente abraçam, digerem esse corpo estranho e o transformam em proteína e outras coisas. Devemos ter um sistema imunológico espiritual em nós. Devíamos ter um macrófago, leucócitos. Devíamos ser capazes de usá-los para nos proteger. Cada vez que a raiva ou o medo se manifestam, devemos convocar esses elementos para virem cercá-los e abraçá-los para não deixar fazer mal à nossa vida, ao nosso corpo, à nossa mente.

 

A prática é muito semelhante à prática do sistema imunológico. Sabemos que isso é um veneno. Se não cuidarmos do veneno, se não tivermos cuidado, vamos deixar o veneno nos destruir. E o Buda falou sobre venenos: confusão, raiva, desejo e assim por diante.

 

Uma palestra sobre o Dharma não é algo agradável de se ouvir. Uma palestra de Dharma deve oferecer métodos de prática para que quando você estiver em uma situação difícil, quando for pego pela raiva, pelo medo, pelo desejo, você saiba como lidar com essas formações mentais.

 

Ao observar, sabemos que o desejo pode trazer muito sofrimento. Ao relembrar nossas experiências anteriores, sabemos que o desejo nos trouxe muito sofrimento. Então, quando o desejo está presente, temos que visualizar, temos que pensar sobre o efeito do desejo. Antes de dizer algo, antes de fazer algo, temos que pensar no efeito que que nosso ato ou fala produzirá. Se pudermos ver muito claramente, seremos capazes de parar de dizer ou fazer isso. Isso é uma questão de treinamento.

 

Já falhamos antes. Depois de dizer isso, depois de o ter feito, sofremos e fazemos sofrer o outro sofrer E, no entanto, quando a situação se apresenta novamente semelhante a essa, nosso padrão de comportamento nos leva a fazer o mesmo, a dizer a mesma coisa, a fazer o mesmo tipo de atos. Nós criamos destruição repetidamente e sempre lamentamos, porque esse é o padrão de comportamento que está profundamente enraizado em nós. Agora que temos o ensinamento e os instrumentos, temos que criar novos padrões de comportamento.

 

(Palestra de Dharma de  27 de novembro de 2005 em Plum Village,.– transcrito do vídeo do YouTube

https://youtu.be/cqfzz1B965k)

Traduzido por Leonardo Dobbin)

Comente esse texto em http://sangavirtual.blogspot.com

 

Caso queira obter esse texto em formato PDF clique aqui